Como É Fácil Estragar a Vida de Alguém, Né?
Admito: Demorei demais para assistir "Treta" ("Beef") e quero tirar o atraso
Tem um sub-gênero, ou nicho, ou um outro termo que ainda não encontrei, que me agrada demais na ficção: A obra que consegue investigar sentimentos muito específicos da humanidade por meio de uma situação plenamente absurda. Parte do que me chamou a atenção em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças quando vi no cinema, lá em 2004 (caramba, vinte anos!), foi isso: Reconhecer coisas que eu já senti e pensei ali ao acompanhar um procedimento médico que apaga uma pessoa do cérebro de alguém. Um exemplo mais recente é o estupendo Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022), que misturou multiverso e cenas de luta para contar um drama familiar com uma dose de honestidade emocional que Hollywood raramente dá conta de dialogar.
Isso estava em minha mente também durante boa parte de Treta (Beef, no original), uma série do ano passado que alguns amigos recomendaram, fui deixando para depois e eu parei para ver só agora no Carnaval. Você viu? Como sempre, firmo aqui o compromisso de chegar até o fim desse texto sem revelar muito da história, para não comprometer a sua experiência (que eu recomendo muito que você tenha. Está na Netflix, corre lá).
Em resumo, Treta narra o que acontece quando duas pessoas à beira de seus limites se encontram em uma briga de trânsito. Dois pós-jovens de 40 anos que vamos conhecer ao longo de dez episódios e observá-los fazendo uma escolha pior que a outra para se vingar do que começou ali em seus carros e, aos poucos, toma proporções muito, mas muito maiores. Quem viu Breaking Bad e Barry, por exemplo, sabe bem como uma decisão ruim gera resultados destruidores. E, assim como nessas duas séries, o que acontece aqui não diz respeito só aos protagonistas, mas também a todos aos seus redores.
O que eu vejo em Treta é duas pessoas que foram tão endurecidas pela vida e perderam a noção de como todas as nossas relações (amorosas, familiares e até de trabalho) são frágeis. Quantas dinâmicas nós já não vimos serem prejudicadas pela força de alguém, por sua aparente resiliência e por suas ações tão estratégicas que estão ali para mascarar todo e qualquer aspecto de vulnerabilidade? À medida com que a trama progride, podemos conhecer mais do passado dos dois e todas as perguntas que você poderia fazer sobre seus comportamentos acabam sendo respondidas. Inclusive, você logo entende por que eles não desistem de prejudicar o outro mesmo quando o rastro de destruição dessas escolhas passa por suas próprias vidas, ou as das pessoas que eles amam. E como é fácil estragar uma vida, né? Só uma escolha errada na hora “certa” e pronto.
Talvez aí o tal absurdo mostre por que foi escolhido para contar uma história dessas. É porque uma vida do tamanho da nossa, com coisinhas tão particulares dentro de cada ser humanozinho, em um planeta tão limitado quanto grande, parte de um universo infinito e em expansão… tudo é meio absurdo mesmo, da dimensão dos nossos sentimentos ao sistema que quer dizer como devemos viver, e também quer nos castigar se não nos conformamos a essas regras do jogo.
Treta não tem uma máquina que apague uma memória do cérebro de alguém, nem personagens que acessam outros planos em universos paralelos para desenvolver alguma habilidade. Mas tem duas pessoas que convivem com o absurdo diariamente, dentro delas e nos contextos em que estão inseridas, daí promoverem também o mais puro suco do caos quando uma cruza o caminho da outra. Haja destruição.
Antes de acabar aqui esse raciocínio, deixa eu te trazer dois detalhes que eu acho que valem a pena ao comentar a série. O primeiro se refere ao gênero, que eu brinquei lá na primeira linha. Treta é toda feita dentro do universo da comédia, e eu friso isso para explicar tanto o quanto é uma série divertida (ainda que nem sempre engraçada)(eu mesmo, se ri duas vezes por episódio, foi muito), quanto uma certa leveza com a qual seus temas são tratados.
E também faço questão de dizer que um dos detalhes que mais me chamaram a atenção em Treta foi… a atenção aos detalhes. Dentro dessa estética de comédia absurda (ou seja, um descompromisso com o mundo como o conhecemos), há várias falas que personagens secundários dizem que nos ajudam a entender a história, ou mesmo algo que os protagonistas falam em determinado momento é um símbolo para algo maior que te ajuda a sacar o que está acontecendo. Da mesma forma, o nome dos episódios é sempre uma frase com teor lúdico muito interessante, acompanhado de obras de arte feitas exclusivamente para a série (do artista David Choe, que, não por acaso, interpreta Isaac, primo do protagonista).
Ou seja, Treta é daqueles produtos de entretenimento que acertam em cheio a nos proporcionar não só diversão, mas um material interessante para você digerir ao longo do tempo - ou seja, interpretar. O que ficou para mim foi a sensação de ter aprendido um pouco mais sobre as pessoas, nosso potencial de destruição e as escolhas que eu não quero fazer para mim ou para os outros, mesmo quando tudo aqui dentro parece estar plenamente absurdo.
Ouvi Dizer…
Perguntei para as pessoas no Instagram o que elas acharam de Treta. Eis o que responderam:
Marcus: “Um acontecimento bobo que escala muito. Pra mim, o romance entre eles é forjado de uma forma caótica. Os dois são de certa forma infelizes e tudo que os dois estavam precisando era de uma faísca pra tudo se incendiar”
Jean: “Superestimada, o caricato demais me pega negativamente. O que me fez não gostar tanto de Beef foi por achar a treta, primeiramente, muito longa. Pra manter 10 episódios de briga, precisaram escalar, apelar ainda mais pro caricato e pra umas situações bestas (tipo fazer xixi no chão do banheiro), aí eu achei que se perderam de vez. Eu gosto muito do plot “dia de fúria”, mas achei cansativo. No final, uma boa ideia que poderia ter rendido uma produção, sei lá, 9/10, chegou, no máximo, em 6,5/10”.
E no podcast…
Eu estava há muito tempo querendo trazer Kaê Guajajara para uma conversa no Pós-Jovem. Nós conversamos uma vez no Música Pavê e eu adorei o que ela disse. Tempos depois, nos encontramos pessoalmente em um evento, e foi igualmente bom trocar com ela, mesmo que rapidamente. Dessa vez, o papo foi daquele jeito que a gente gosta: Sem pressa, honestão e trazendo mil assuntos para roda - também, o que não lhe falta é o que dizer, e ela comunica em música, em livro e, desta vez, também no podcast. Sai na terça (20), no comecinho da tarde.
Bora manter contato!
Em 04 de março, vem mais newsletter para você. No meio tempo, vem pro papo no podcast@posjovem.com.br e siga o Pós-Jovem no Instagram e no Twitter.
Beef ainda tá na minha fila, mas sua descrição toda me lembrou “Os Outros”, no Globoplay, já viu? Gostei demais!