Começando o Ano Pelo Fim (do Mundo)
É preciso viver como se não houvesse amanhã (porque se você parar pra pensar etc.)
Em uma daquelas coincidências maravilhosas que a vida (ou o algoritmo) tem, comecei na mesma semana duas séries ficcionais com o mesmo pano de fundo: O fim do mundo, ou da raça humana. Uma delas é Carol e o Fim do Mundo (Netflix), uma minissérie que acabou de sair, com apenas dez episódios. A outra é O Último Cara da Terra (Star+) que, em 2015, propôs um futuro no qual a humanidade era dizimada por um vírus em 2020 (juro).
A primeira é uma animação super sensível que mostra os últimos meses da Terra antes de uma iminente e inevitável colisão com um outro planeta. O primeiro episódio, principalmente, trata muito de mostrar como a humanidade se porta quando não tem futuro: De gente que para de usar roupas a um consenso geral de que nem trabalho, nem dinheiro têm mais qualquer relevância. Pra que se importar com essas convenções se vamos todos morrer?
Já O Último Cara (são quatro temporadas, ainda estou na segunda) traz um olhar mais (ou ainda mais) atento ao indivíduo. O primeiro episódio acompanha Phil (interpretado por Will Forte, também criador da série, figurinha comum para quem também é fã, ou nerd, de comédia), um homem que escapou do tal vírus e percorre os EUA em uma nova realidade sem lei, sem economia ou qualquer tipo de mecanismo de organização da sociedade. Quando ele (logo) descobre que não foi o único sobrevivente (não é spoiler, é a premissa da série!), a discussão envolve caráter, valores e o comportamento em geral nessas circunstâncias.
Para além da extinção da raça humana como pano de fundo, as duas séries têm em comum esses questionamento de: O que você faria se não houvesse o amanhã? Ou ainda: Como você viveria se não tivesse como escapar da brevidade da vida? Acontece que todo pós-jovem sabe muito bem que isso não é próprio da ficção. Tem a ver com como escolhemos levantar da cama todos os dias e o que fazemos com o tempo antes de voltar para ela à noite. Eu sei que nem sempre é agradável falar disso, mas o assunto hoje tem a ver sim ser como nosso fim (assim como o planeta prestes a colidir com a Terra) é iminente, inevitável e imprevisível. E quero falar isso não pela ótica da morte, mas na perspectiva da vida.
Retomando aqui o que a última edição da newsletter em 2023 comentou: Somos a geração da pandemia. Quem é pós-jovem em 2024 conhece muito bem a sensação de que o mundo pode mudar completamente do dia para a noite. Aprendemos que aquela ideia de “sempre” não existe - “eu sempre vejo tais pessoas”, “sempre vou a tal lugar”, “sempre tenho o mesmo dia a dia”. Não, todo sempre é temporário. Eu questiono (e sei que não estou sozinho nisso) se nós tivemos as conversas necessárias naquele período de vacinação, a tal da “retomada”, ou “reabertura”. Não sei se refletimos o suficiente sobre o que aprendemos com o isolamento e com todas as mudanças e perdas, ou se apenas nos contentamos com a ilusão de segurança de uma vida que “voltou ao normal”.
Por falar nisso, outra similaridade, ou mesmo coincidência, entre essas duas séries é ambas terem uma personagem (com o mesmo nome!) que entende que a melhor maneira de enfrentar a tragédia é tentar viver como antes - em O Último Cara, a personagem em questão respeita a sinalização de trânsito, por exemplo, mesmo sem nenhum outro carro na rua. Mas é isso mesmo, nós somos craques em desenvolver esses mecanismos que estabelecem uma ideia (ilusória) de controle, ainda mais quando se trata de um tema que parece que nunca estaremos 100% preparados para conversar, como a morte.
Fala-se muito em “distrações”, né? Como se aquilo que escolhêssemos para preencher o nosso tempo servisse para nos alienar de confrontar a nossa mortalidade. E eu acabo pensando duas coisas quando escuto isso. Uma é que isso que chamam de distração (e costuma ter um significado de diversão)(a palavra passatempo diz muito, né?) é parte integral da vida - da arte ao esporte, das atividades que requerem habilidades às conversas soltas e risadas altas. Talvez elas não nos distraiam, talvez elas sejam a própria vida, mas o sentido de improdutividade dentro do nosso sistema traga esse tipo de conotação.
Dito isso, a segunda coisa que me vem à mente é que o próprio trabalho é muito mais eficaz em nos distrair do que o entretenimento, porque ele vem carregado de um senso de grandeza que argumenta muito bem a seu favor. É aquela velha máxima do “você vive para trabalhar ou trabalha para viver?”, e a primeira hipótese, em nossa cultura, nem sempre é condenada. Se lembramos que nosso tempo é limitado, o trabalho - que também é temporário - acaba ganhando seu devido lugar. Não tenho dúvidas de que ele é importante, mas é apenas uma das partes que compõem o todo.
É próprio do nosso zeitgeist também falar em “viver o agora”. Mas o que é o agora senão o sempre temporário? E será que há algo mais eficaz em nos prender no instante, notar o nosso corpo e dar o devido valor às coisas do que compreender, sem distrações, que tudo o que temos é esse tal agora? Você não vê fulano e sicrano sempre, você não viaja sempre para tal lugar nos feriados e você não faz sempre a mesma coisa, porque todos esses “sempres” são temporários.
Dá para viver ignorando que o amanhã não é garantido? Entendo que ser pós-jovem é poder projetar sonhos, planos e qualquer esperança em décadas para frente, mas é também - com as mudanças que já observamos e pessoas que vimos ir embora - compreender que, se há vida para ser vivida, é melhor não perder tempo.
Todo esse texto já estava mais ou menos rascunhado quando eu recebi uma mensagem me informando a perda de uma pessoa muito querida. Ela estava doente já há um tempinho, mas não nos víamos há anos. Há um mês, nos encontramos, meio que por acaso, e o abraço que ela me deu dizia - e eu ouvi claramente, mesmo sem palavras - “que bom que deu tempo de te dar esse abraço”.
Faço questão de começar o ano do Pós-Jovem dessa forma, repito, na mesma ideia proposta para o fim do anterior. Estar vivo e poder viver é sempre especial. Sempre, agora também.
Dicas, dicas, dicas!
(Isso é, além de Carol e o Fim do Mundo, na Netflix. O Último Cara da Terra eu ainda não terminei, então não posso recomendar)
Suika [game]
Essa dica veio da amiga (e designer do Pós-Jovem) Nayara Lara (#073) e seu esposo (e também amigo) Gabriel, que trouxeram aqui em casa dia desses, durante o recesso. Suika, também conhecido como “o jogo da melancia”, é um desses quebra cabeças eletrônicos, à la Tetris, no qual você tenta a maior pontuação possível antes que a tela fique toda preenchida - no caso, de frutas. É uma boa pedida para quem precisa dar uma higienizada na mente - sim, games podem ser meditativos - e para quem curte desafios. A versão para o Nintendo Switch é ótima, vi que está para sair também na Steam (para PC). Eu tenho jogado uma versão gratuita (e genérica) pelo browser. Não é das melhores, mas cumpre seu papel.
Retrospectiva de Carreira de Alexandre Órion [exposição]
Se você está em São Paulo neste mês, sinto muito, mas tem aqui uma oportunidade bem legal de um contato com a obra deste baita artista, que passou pelo podcast no episódio #110. Trata-se de uma breve retrospectiva de seus trabalhos, incluindo alguns que ele comentou no Pós-Jovem. Eu fui e adorei. O destaque é Vergonha na Cara, autorretrato feito com 17 mil bitucas de cigarro. É na galeria Portal 19 (Haddock Lobo, 1307/loja 18), entrada gratuita, e vai até dia 31/01.
E no podcast…
Por falar em artistas visuais, a sexta temporada do Pós-Jovem começa com uma grande conversa com a maravilhosa Rejane Cantoni. Ela é realiza trabalhos site specific (ou seja, obras pensadas para aquele determinado lugar) que misturam interações humanas com tecnologia - ela realiza uma interessante pesquisa com programação e é parte de um conselho multidisciplinar para um projeto da Nasa (!). Tive a honra de trabalhar com ela nos últimos meses em um projeto e, em cada um dos nossos encontros, eu saía maravilhado com tudo o que ela traz para as conversas. Vocês vão amar. Sai na terça, dia 23.
Bora manter contato!
Em 05 de fevereiro, vem mais newsletter para você. No meio tempo, vem pro papo no podcast@posjovem.com.br e siga o Pós-Jovem no Instagram e no Twitter.
Ótima reflexão, estava tendo ela recentemente também