Nenhuma Música Será De Novo do Jeito que Já Foi um Dia
Das coisas que meu trabalho me faz pensar
Nunca conversei com Lulu Santos. Cheguei perto um par de vezes, mas não nos conhecemos. Ou melhor, ele não sabe que eu existo, mas eu não conheço um mundo sem Lulu Santos. Quando eu nasci, há exatas quatro décadas, ele já tinha alguns álbuns lançados, então, quando cheguei aqui, esse plano já havia sido transformado com suas músicas. Em 1995, me apaixonei perdidamente por seu Eu e Memê, Memê e Eu, e deve ter algo engraçado em uma criança de dez anos ser tão fã de um disco de remixes, mas foi o meu caso. Ali, eu fui exposto a novas maneiras de escutar aquelas músicas que já faziam parte do repertório popular - aquelas canções que conhecemos mesmo sem saber - e, de certa forma, da minha existência.
Corta para a temporada 2024/2025 e Lulu acabou ganhando um novo fôlego na minha vida. Primeiro, veio o Coala (meu festival do coração) com a edição de décimo aniversário e o próprio “talvez eu seja o último romântico” como uma das atrações principais. Até contei em uma gravação do podcast dia desses, de um episódio que vai ao ar agora em fevereiro, que ele começou o show com Toda Forma de Amor e eu só chorei, mais nada. Era uma das músicas reimaginadas no disco de remixes, como um funk melody meio sacana, meio bem humorado, sem perder a força daquela baita letra. Enfim, foi o suficiente para eu ter que escutar Lulu Santos toda semana - sabe aquela coceira musical que só passa com o play?
E tem um lance muito ingrato que acontece com quem chegou a um mundo onde já existiam essas músicas, que sabe cantar no karaokê sem olhar a letra e está acostumado com as canções em trilhas sonoras (aliás, aquela versão de Assim Caminha a Humanidade que abria Malhação antes de Charlie Brown Jr. é desse disco de 95). Me refiro a estar tão acostumado com elas ao ponto de não dar o devido valor. Já se pegou tendo que dar conta do peso da ficha que cai quando você percebe que uma música é muito melhor do que você achava? É aí que eu chego a Tempos Modernos, e faço questão de transcrever a letra que você sabe cantar de cor.
Eu vejo a vida melhor no futuro
Eu vejo isso por cima de um muro
De hipocrisia que insiste em nos rodearEu vejo a vida mais clara e farta
Repleta de toda satisfação
Que se tem direito
Do firmamento ao chãoEu quero crer no amor numa boa
Que isso valha pra qualquer pessoa
Que realizar a força que tem uma paixãoEu vejo um novo começo de era
De gente fina, elegante e sincera
Com habilidade pra dizer
Mais sim do que nãoHoje o tempo voa, amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
E não há tempo que volte, amorVamos viver tudo que há pra viver
Vamos nos permitir
Sim, essa música que todo mundo já cantarolou enquanto tocavam em um barzinho, que já riu quando alguém trocou “permitir” por “demitir” ou que usou de legenda em foto em rede social (ou no status do MSN Messenger), ela é mais do que incrível. Tão profunda quanto palatável, esperançosa e de fácil identificação. Pode chamar de “clássica” que cabe. Não entrou no disco de remixes, mas ganhou versão acústica - ou seja, ela também não é mais “do jeito que já foi um dia”, como seu compositor disse em outro grande sucesso.
Ando com uma coceira muito específica para escutar Tempos Modernos. Acho que tem a ver com uma ânsia de ver uma vida melhor por cima do muro de hipocrisia, com minha vontade de dizer mais sim do que não ou só por entender melhor do que nunca que não há tempo que volte, ou que “nada será como antes amanhã”. Não sei, só sei que tem sido assim toda semana: Parar e escutar essa música algumas vezes seguidas.
Ela estava na minha cabeça quando fui entrevistar Cícero dia desses - com esse sim eu já conversei dezenas de vezes -, que acabou de lançar Concerto 1, um álbum com versões orquestradas de dez de suas composições. Acho que você deve escutar o disco e também ler a entrevista no Música Pavê, porque as coisas que ele fala sempre merecem atenção. E parte do que conversamos foi sobre o exercício de voltar a essas músicas anos depois e reapresentá-las com uma nova atmosfera.
Chorei também escutando Concerto 1 pela primeira vez, principalmente em Tempo de Pipa, Capim-Limão e Por Botafogo, músicas que fazem muito parte de quem eu sou, tendo me acompanhado em momentos muito específicos da minha história, e agora estão aí tão bonitas de roupinha nova. Por muitos anos, conheci um mundo sem elas, e sou muito grato por elas existirem.
Quem me passou essa perspectiva (se segura para a carteirada que eu vou dar agora) foi Erasmo Carlos no Podcast Música Pavê. Em determinado momento, ele comentou de um mundo sem bossa nova e sem rock, e não é arriscado afirmar que todos os que estão lendo essas palavras não conseguem conceber uma existências sem esses dois - e, não sei você, mas ainda estou me adaptando a um mundo sem Erasmo. Mas é isso, sabemos que os humanos vão colocando novas coisas no mundo e tudo vai mudando ao longo do tempo.
Tenho esse privilégio de acompanhar músicos que permitem, ou buscam, que aquilo que um dia fizeram seja também modificado. Do remix à versão orquestrada, o raciocínio é o mesmo: Novas maneiras de termos acesso a algo que já conhecíamos tão bem. E o que é a novidade senão um fôlego extra para seguirmos desfrutando daquilo que já existe?
É sempre interessante poder retornar aos nossos favoritos também por que eles se transformam em um novo contato - aqueles nossos olhos e ouvidos que perceberam a obra na primeira vez não existem mais. Se tratando de música, que é uma arte feita para a repetição, é sempre possível passar pela experiência que tive com Tempos Modernos, de perceber que a maneira com que entendo essa música hoje é muito diferente dos contatos que tive com ela no passado.
Estava falando dela para uma amiga, que fiz escutar novamente essa canção que ela já conhecia tão bem. Ela comentou: “Fico pensando o que ele estava vivendo para escrever isso”. Sem nem precisar pensar, respondi: “Sabe a minha brisa? 40 anos depois, quais significados esses versos têm para ele hoje?”. Será que Lulu também tem saudades desse otimismo todo? Será que disse sim, que se permitiu?
E no podcast…
Olha que legal: O Pós-Jovem recebe André Fernandes, jornalista fundador da Agência de Notícias das Favelas. Ele, que recebeu recentemente do Governo Federal a Medalha Oswaldo Cruz, veio ao podcast contar sobre já ter vivido tanto em 53 anos e querer chegar aos 100 nesse pique, lutando por um mundo melhor dentro e fora das favelas. Episódio legal demais que sai na terça, 28 de janeiro.
Bora manter contato!
A próxima edição da newsletter chega em 10 de fevereiro. Enquanto isso, vem pro papo no podcast@posjovem.com.br e siga o Pós-Jovem no Instagram e no Bluesky, além do canal Acesso aos Bastidores do Whatsapp. Não sabe por onde começar a escutar o podcast? Que tal a playlist de “Episódios Essenciais”?